Maria Feliciano de pé, encostada na mesa. |
No subúrbio de João Pessoa, pacientes com câncer precisam
vencer o medo e o isolamento para seguir em frente. Nesta luta, encontraram o
artesanato sustentável – feito a partir de material reciclado – como aliado.
Tiago Eloy Zaidan*
Vazia. Sem móveis, eletrodomésticos. Sem colchão. Foi assim
que Maria José Feliciano, então com 45 anos, encontrou a casa quando voltou do
hospital Napoleão Laureano, em João Pessoa, após perder o seio direito e parte
do seio esquerdo para o câncer. Sem aviso prévio, seu marido se foi e levou
tudo consigo. Jamais voltou ou deu notícia.
Convalescente, e ainda com o dreno da cirurgia, Maria contou
com a solidariedade dos vizinhos e amigos para enfrentar o pós-operatório e os
dois anos de seções de quimioterapia. “Todo dia o povo chegava na minha casa.
Eram vizinhos, amigos de longe, de todos os cantos, as vezes batiam na minha
porta. Quem ia da primeira vez me visitar, já voltava com outra pessoa. Quando
vinha da próxima vez, já não vinha só”. Ainda assim, teve a água e a energia
elétrica cortada. O benefício de 600 reais com que vive até hoje só saiu três
anos depois.
Maria trabalhava como doméstica em casa de família. O
prelúdio da agonia começou quando a pernambucana, radicada na Paraíba, passou a
sentir os efeitos da doença, em 2005, o que a levou a procurar um especialista.
A médica que a atendeu foi lacônica: “você está com câncer”. O tumor exigia
cuidados urgentes, pois já se aproximava do pulmão. “Eu fiquei apavorada. Chorei tanto. Entrei em
desespero”, lembra Maria. O desconhecimento a respeito da doença só complicou
as coisas. Com medo do que estava por vir, a pernambucana demorou três meses
para iniciar o tratamento. “Eu olhava a minha mama e não via nada”, recorda.
A partir de então, o câncer não deu trégua. Recuperada da
mama, Maria encontrou um tumor nos rins. Perdeu um dos rins. O que sobrou
funciona com a ajuda de remédios e monitoramento constante. Fez mais seis meses
de quimioterapia. Na ocasião, o médico chegou a cravar um ano de sobrevida para
a ex-empregada doméstica. Já se passaram seis.
Hoje, com 59 anos, Maria mora sozinha na comunidade do Vale
das Palmeiras, no subúrbio de João Pessoa. Já contabiliza nove cirurgias por
conta do câncer. E não deve parar por aqui. Recentemente, durante o
acompanhamento médico, descobriu um tumor maligno na boca. Os velhos temores e
as lembranças amargas das experiências anteriores mais uma vez estão atrasando
o início do tratamento. “Eu já marquei três vezes e não consigo ir. Já se
passaram oito meses. O médico olha e diz: ‘tire isso’. Mais eu tenho medo”.
O lado positivo é que, agora, Maria não está mais só. Um dos
legados da luta contra o câncer foi a integração da Pernambucana à Associação
Esperança e Vida (AEV), uma instituição que acolhe portadores de câncer de
baixa renda, no bairro do Cristo Redentor, próximo à comunidade onde Maria
reside. Em João Pessoa, a associação atende a 74 portadores de câncer e oferece
medicação, alimento, orientação e terapias complementares, tais como aulas de
dança e de artesanato.
Maria ingressou na EAV quando ainda estava enfrentando o
câncer no rim. Foi levada por uma amiga que também estava se tratando no
hospital Napoleão Laureano, na região central da capital paraibana. Além da
ajuda com os medicamentos e exames, a pernambucana venceu a solidão graças a
interação diária com outras mulheres que estão passando pela mesma situação e
se apoiam. “Imagine você com problema de câncer e viver sozinha numa casa, sem
ninguém. Então eu acordo de manhã, tomo banho, vou para o [hospital] Napoleão
Laureano. E do Laureano eu vou para a associação. Lá eu lancho, tomo o meu
café, brinco com as meninas, conto os meus problemas”, explica Maria, a qual também
se tornou artesã. Um dos hits dos
serviços oferecidos pela casa é a oficina de artesanato confeccionado a partir
de material reciclado.
Mestres
Izelda Gomes Campelo, 46 anos, e Ana Lúcia Cândido
Nascimento, 58, são professoras de trabalhos manuais na instituição. As duas já
foram pacientes e venceram o câncer de mama há 10 anos. Na época, foram alunas
de artesanato em uma instituição de apoio aos portadores de câncer. Hoje, atuam
como voluntárias, assim como a professora que as ensinou no passado. “A gente
vai fazendo [as peças] pouco a pouco. É tipo uma terapia, algo para ocupar a
mente”, explica Izelda.
Para Ana Lúcia, a qual não possui renda fixa, os itens
artesanais que produz e vende ajudam a garantir o sustento. Particularmente,
impressiona a sua visão positiva com relação a experiência que teve com a
enfermidade. “O câncer que eu enfrentei há 10 anos foi um divisor. O antes e o
depois. A doença mudou a minha vida para melhor. Descobri novas amizades.
Descobri pessoas com quem eu não tinha aproximação, e depois vi o quanto essas
pessoas gostavam de mim”, revela.
A matéria-prima utilizada nas oficinas de artesanato é
vasta. Recicláveis como CD arranhado, caixa de leite, garrafa PET, sobras de
tecido, pote de sorvete, garrafas de vidro e caixa de sapato servem de ponto de
partida para a criatividade das professoras e alunas. Nas mãos delas, o
descarte se converte em porta objetos, enfeites, brinquedos, caixinha de
presente, peso de porta, lembrancinha de natal, dentre outros. As peças
produzidas durante as oficinas são colocadas à venda e os recursos são
revertidos para a subsistência da casa. Os artesanatos podem ser encontrados na
própria instituição ou em eventos para o qual a Associação é convidada.
A assistente social da AEV, Ana Paula Ferreira, esclarece
que o paciente, quando toma conhecimento do diagnóstico, costuma se isolar. Por
outro lado, explica que “quando o portador tem o contato com alguma atividade,
começa a se sentir mais útil, mais feliz”. E o artesanato é uma das
possibilidades.
Teresinha Pereira da Silva, 56 anos, é uma das alunas mais
avançadas. Está na associação desde 2012. Enfrentou o câncer de mama e o câncer
de pele. Atualmente, está em fase de acompanhamento. Aplicada, hoje já faz
peças para vender. Voluntariosa, preocupa-se em coletar e trazer
matérias-primas recicláveis para a associação, como garrafas de vidro e caixas
de leite.
Teresinha apresentou a associação ao próprio pai. Joaquim
Elisiário da Silva, 81 anos, luta desde os seus 39 contra o câncer de pele, o
qual já consumiu parte do seu rosto.
Potiguar, ao chegar na cidade de João Pessoa, Joaquim
empregou-se na construção civil. Trabalhava sem orientação, sob sol e chuva. O
primeiro sinal da moléstia foi uma ferida no rosto. Mesmo em tratamento,
continuou sua lida em canteiros de obra. Com o tempo, o câncer surgiu em outras
partes do corpo, como braço e tórax. Já foram 28 seções de radioterapia.
Recentemente, Joaquim perdeu parte do nariz. Também no caso do ex-pedreiro
potiguar, a ausência de esclarecimento sobre a doença era patente. Joaquim
explica que chegou a ter receio de “transmitir” o seu câncer de pele. “Eu
fiquei até nervoso. Foi na época em que eu tinha menino pequeno. Eu pensei, [o
câncer] vai pegar no menino. Eu cheguei a falar com o médico”, relembra.
O desconhecimento pode ser um inimigo tão perigoso quanto o
próprio tumor. Por isso a importância da orientação terapêutica e da interação
com outros pacientes.
Em minha última visita à associação, reencontrei a
pernambucana Maria José Feliciano, na oficina de artesanato, ativa e
sorridente. Ela já venceu o câncer duas vezes. Mas, com o diagnóstico de um
tumor na boca, a luta ainda não acabou. Pelo menos, agora, ela sabe que pode
voltar para uma casa onde haverá gente esperando e torcendo por ela. As
matérias primas para novas peças de artesanato também estarão aguardando, para
transformarem-se em obras de arte pelas mãos de uma guerreira. A vida de Maria
está repleta de sentido. Nada vazia, diferentemente da casa abandonada pelo
marido, anos atrás.
Tiago Eloy Zaidan
é jornalista e professor da Unidade Acadêmica de Gestão e Negócios do Instituto
Federal da Paraíba – campus João Pessoa.
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