Egrinalda e Maria entre os colegas catadores da Catajampa. |
A história de duas catadoras de resíduos sólidos em João
Pessoa descortina o universo de uma categoria de profissionais urbanos invisível
para muitos, embora fundamental no desenvolvimento da reciclagem e da
reutilização no país.
Tiago Eloy Zaidan*
Turistas, pessoas bonitas e bem vestidas, carros de luxo,
sol e praia. Em meio a essa balburdia glamorosa, Egrinalda dos Santos Silva, 45
anos, e Maria de Jesus Leite, 45 anos, realizam os seus trabalhos de forma
discreta, quase anônima. Ziguezagueando pelas ruas dos afamados bairros de
Manaíra, Tambaú e Cabo Branco, em João Pessoa (PB), estas duas senhoras
encostam de lixeira em lixeira, nas portas das casas e prédios, empreendendo
uma caçada arqueológica por resíduos recicláveis em meio a todo tipo de lixo,
descartado indistintamente pela maioria dos residentes da abastarda região. As
duas trabalham juntas neste ramo a mais de 20 anos. Praticamente não há
interação com os moradores. A exceção para às vezes em que algum transeunte,
aparentemente incomodado, troca de calçada. Ou ainda, sem disfarçar, tampa o
nariz ao passar.
A jornada de Egrinalda e Maria começa longe da praia. Por
volta das 13h30, elas deixam o galpão da Associação de Catadores Catajampa, na
comunidade de Mandacaru, no subúrbio da capital paraibana. De lá, elas partem a
pé, com um carrinho puxado à mão, em direção aos bairros da orla, onde se
concentram os resíduos recicláveis mais valiosos e em maior quantidade.
Nessa etapa do processo, o carrinho é o único instrumento de
trabalho. As catadoras não se valem de qualquer proteção para manipular o lixo.
Nem mesmo luva. Usam apenas uma camiseta simples, de cor verde, a qual as
identifica como catadoras vinculadas a uma associação.
Depois de percorrerem as ruas de Manaíra, Tambaú e Cabo
Branco, as duas fazem todo o caminho de volta. Quando retornam à comunidade de
Mandacaru, às 4h da manhã, o sol já está preste a nascer. João Pessoa é a
cidade mais oriental das Américas. E, por isso, é onde o sol nasce primeiro no
continente. As catadoras partem, então, para a etapa seguinte do processo: a
separação dos resíduos coletados.
O caminho de volta ao galpão, feito às escuras, é perigoso.
Maria de Jesus já foi abordada por um viciado em drogas, e teve uma arma
apontada para o seu rosto. Resíduos orgânicos e recicláveis, que ela havia
coletado durante toda a tarde e madrugada, eram os únicos bens de valor que ela
trazia consigo.
Egrinalda e Maria são, respectivamente, presidente e
vice-presidente da associação Catajampa. Elas precisam conciliar os deveres
representativos da associação com a labuta nas ruas. Egrinalda também é
representante do Movimento Nacional dos Catadores na Paraíba. Independente dos
compromissos, não há como abrir mão do trabalho de catação, pois, sem ele, existe
o risco de faltar comida em casa. O absenteísmo causado por uma virose, então,
ganha contornos dramáticos. “A gente está com o material defasado porque este
mês lá, todo mundo adoeceu. É virose, dengue”, revela Egrinalda.
Começo no lixão
Egrinalda é natural de João Pessoa. Foi criada em um
barraco, em uma área ocupada, às margens da BR Transamazônica. A lendária
rodovia nasce na vizinha cidade de Cabedelo e corta a capital paraibana. O
rendimento familiar era parco. A mãe de Egrinalda era lavadeira; o pai,
sapateiro. O alcoolismo do pai tornava tudo mais difícil. Além de gastar o
dinheiro com bebidas alcoólicas, o chefe da família espancava a esposa. O pouco
que possuíam para se alimentar era oriundo de uma roça mantida no quintal do
barraco.
Egrinalda começou a trabalhar cedo e exerceu várias
profissões. Foi empregada doméstica e pescadora, e chegou a trabalhar em uma
pedreira. Quebrava pedras e enchia os caminhões junto com os demais empregados
– todos homens.
Maria de Jesus, por sua vez, é natural de Pombal, no sertão
da Paraíba. Foi criada sem pai. Sua mãe era cabeleireira e oferecia os seus
serviços porta a porta. Hoje, possui dois filhos, um rapaz de 22 e uma menina
de 15. Eram três filhos. Perdeu Joabson, então com um ano e seis meses, em um
incidente que se tornou o maior trauma de sua vida. Foi há oito anos. A casa em
que morava estava com a eletricidade cortada por falta de pagamento. Então,
usavam-se velas. Em certa ocasião, uma vela tombou. A casa foi tomada pelo fogo
e a criança morreu asfixiada.
Egrinalda possui três filhos. Um rapaz de 23 anos, uma
menina de 16 e um menino de 8. Nenhuma das duas catadoras contou com a ajuda de
companheiros na criação dos rebentos. São mães solteiras. A bem da verdade, uma
ajudou a outra.
Há cerca de 20 anos, as duas começaram juntas a trabalhar na
catação de resíduos sólidos. Na ocasião, cada uma tinha um filho, e Egrinalda
já estava gestante do segundo. As duas se deslocavam, com as duas crianças, de
Cabedelo para a comunidade de Mandacaru, em João Pessoa, em uma única
bicicleta. Deixavam os filhos na casa da mãe de Egrinalda, e depois seguiam
para o lixão, no bairro do Roger. Recolhiam não apenas os resíduos sólidos.
Disputavam alimentos com os urubus. Aproveitavam, sobretudo, os descartes dos
supermercados, que chegavam aos caminhões, com produtos vencidos e estragados.
“Era iogurte, era carne de charque, era feijão. O que chegasse a gente estava
aproveitando”, lembra Egrinalda.
O período em que trabalharam no lixão, ao lado de outros
catadores em situação de extrema vulnerabilidade, transformou as duas amigas. “A
partir daí a gente foi perdendo a vergonha”, afirma a presidente da associação
Catajampa. O processo de despojamento se mostraria bastante útil. O lixão de
João Pessoa foi desativado; os catadores, desalojados. Muitos deles, como
Egrinalda e Maria de Jesus, passaram a fazer a catação nas ruas. “Esquecemos a
vergonha e metemos a cara. Faz uma faixa de dez anos que começamos a catar
porta a porta”, calcula Egrinalda.
Hoje, as duas são vizinhas e moram próximas ao galpão
utilizado pela Catajampa, na comunidade de Mandacaru. Os filhos mais velhos de
cada uma, Edgley, 23 anos, e Joel de 22, trabalham como catadores na
associação.
Movimento
A Catajampa existe a cerca de uma década. Mas o processo de
qualificação se deu há apenas três meses, graças a uma parceria com a
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). A associação conta hoje com o suporte
do galpão alugado, de 15 carrinhos para o recolhimento dos resíduos porta a
porta, de uma prensa, de uma balança e um de caminhão de pequeno porte, cedido pelo
programa Pró-Catador, executado pela UEPB.
Apesar dos avanços estruturais, a venda do material coletado
e devidamente segregado ainda representa o nó górdio do processo. Segundo
esclarece a presidente da Catajampa, a indústria só recebe os recicláveis a
partir de sete toneladas. Além disso, a indústria exige pontualidade na entrega
regular dos resíduos. Na impossibilidade de reunir mensalmente uma quantidade
tão grande de recicláveis, os catadores acabam negociando com atravessadores,
os quais pagam um valor bem abaixo do praticado pela indústria.
Na tentativa de reverter essa situação, o movimento dos
catadores – do qual Egrinalda faz parte – tem tentado articular uma rede de
comercialização, com vistas a empoderar a categoria no momento da venda dos
resíduos.
Se a transação é problemática, por outro lado, o Decreto Nº
5.940, assinado pelo então presidente Lula, em 25 de outubro de 2006, traz
perspectivas positivas as quais devem contribuir com o aumento do volume da
coleta. O referido dispositivo “institui a separação dos resíduos recicláveis
descartados pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta e
indireta, na fonte geradora”, e prevê “a sua destinação às associações e
cooperativas dos catadores de materiais recicláveis”.
No livro Meio
ambiente, poluição e reciclagem (São Paulo, editora Blucher, 2010), Eloisa
Mano, Élen Pacheco e Cláudia Bonelli, esclarecem que a coleta seletiva “é
caracterizada pela separação dos materiais na fonte, pela população, com
posterior coleta e envio a usinas de triagem, cooperativas, sucateiros,
beneficiadores ou recicladores”. As autoras são conclusivas: “A implementação
da coleta seletiva constitui a principal ação para o desenvolvimento da
reciclagem e da reutilização”.
Reconhecimento
A despeito das adversidades, para o professor e coordenador
do curso de Gestão Ambiental do IFPB João Pessoa, Arilde Franco Alves, o país tem evoluído no tocante à
reciclagem. Muito em função da atuação dos catadores, como Egrinalda e Maria de
Jesus. “Houve, de maneira não intencional, mas em decorrência da situação
econômica e sobretudo da situação social do país, o desenvolvimento de uma
verdadeira legião de pessoas informais, envolvidas nessa questão da catação,
que envolve a coleta desses materiais”, explica Alves.
O professor enfatiza a importância do trabalho realizado
pelos catadores, inclusive, no bojo da discussão socioambiental. “Pode-se dizer
que eles são verdadeiros ecologistas, de maneira informal, indireta e até inconsciente.
Eles são verdadeiros heróis, embora, às vezes, sejam pouco reconhecidos”,
afirma.
A falta de reconhecimento é sentida pelos catadores. Maria
de Jesus, por exemplo, diz ter orgulho da profissão e reconhece a importância
do trabalho para o meio ambiente. No entanto, admite: espera que a filha de 15
anos, a qual está cursando o ensino médio, siga outro caminho. “Sinceramente,
eu não quero isso para os meus filhos”, desabafa.
A ressalva não é por acaso. Que o diga Edgley Silva, o filho
mais velho de Egrinalda. Certa vez, o jovem, o qual também é catador, foi
abordado por um morador em Manaíra, bairro de classe média de João Pessoa. Edgley
estava com a camisa verde, a qual identifica os catadores da associação
Catajampa, e chegou a se apresentar. Procurava por recicláveis em meio ao lixo
depositado em sacos plásticos na calçada de um prédio. O morador, por seu
turno, foi agressivo. Queixou-se que o lixo lhe pertencia e alegou que os
catadores teriam “um vício de chegar nos cantos e rasgar os sacos e espalhar o
lixo”. Em seguida, teria partido para a agressão, o que não ocorreu graças ao
um transeunte, que o conteve.
Infelizmente, o senhor de Manaíra, de tão nervoso que
estava, provavelmente não escutou o argumento de Edgley em defesa própria: “Eu
faço parte dessa associação aqui. Sou um catador organizado. O meu trabalho não
é rasgar e fazer sujeira. O meu trabalho é limpar. Eu tiro a minha
sobrevivência, e a de minha família, e ajudo o meio ambiente; todo o planeta”.
Depois do incidente, o morador contrariado voltou para o conforto de sua
residência. Ao jovem, ainda restava uma longa caminhada de volta, a puxar o seu
carrinho, até o galpão de triagem em Mandacaru.
*Tiago Eloy Zaidan
é jornalista e professor da Unidade Acadêmica de Gestão e Negócios do Instituto
Federal da Paraíba – campus João Pessoa.
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