Josefa Vieira, opção pela agroecologia |
Feiras agroecológicas organizadas por pequenos agricultores ajudam
a aproximar produtores de consumidores ao passo em que lançam luzes sobre a agroecologia,
uma lógica produtiva alternativa a qual rompe paradigmas e reforça elos entre
os camponeses e a terra.
Eloy Zaidan*
É uma hora da manhã de terça-feira. No assentamento Dona
Helena, na zona rural de Cruz do Espírito Santo, na várzea paraibana, o dia já
começou para os pequenos agricultores. Eles enchem um caminhão velho com os
produtos agroecológicos e orgânicos oriundos dos próprios roçados. Uma miríade
de alimentos. Dali, partem para a capital do estado, mais precisamente para o
Instituto Federal da Paraíba (IFPB) de João Pessoa. Por volta das quatro horas
da manhã, os agricultores chegam ao destino. As hortaliças, legumes e frutas
são desembarcados e organizados em barracas de feira no pátio principal do
campus. Os agricultores vestem uma bata verde, identificando a associação a
qual pertencem, e se convertem em feirantes. Antes das seis horas, já está tudo
pronto.
Logo mais, os clientes – principalmente funcionários e
alunos – começam a chegar. A feira permanece montada até as 13h, quando os
agricultores fazem toda a operação ao reverso e voltam para o assentamento. Está
é a rotina de todas as terças vivida pelos trabalhadores da Associação dos
Agricultores Agroecologicos da Várzea Paraibana – a Ecovárzea. Criada em 2002, a
organização reúne agricultores assentados. A Comissão Pastoral da Terra os
articulou e os apresentou aos métodos e à filosofia da agricultura orgânica e
da agroecologia. Os trabalhadores foram instruídos por meio de cursos e
oficinas e incentivados a se organizarem com vistas a venderem os seus próprios
produtos, abdicando, assim, dos atravessadores.
Inicialmente, aproximadamente dez barraquinhas de feira
foram adquiridas. Atualmente, o grupo promove feiras agroecológicas duas vezes
por semana. Às sextas, os associados visitam o campus da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB). Além das incursões fixas, os agricultores participam de
feiras avulsas quando convidados.
“As feiras agroecológicas são mecanismos de promoção
e inserção dos trabalhadores e trabalhadoras do campo na etapa da
cadeia produtiva relacionada à venda do fruto de seus trabalhos”, explica o
geógrafo e professor do IFPB João Pessoa, Ismael Araújo. “Tais feiras geram a
possibilidade de dar visibilidade a uma outra lógica produtiva, onde o que
importa é garantir a diversidade da produção, respeitando a diversidade do
ambiente onde se produz”, conclui Araújo.
A agricultora Josefa Mota da Silva Vieira, 60 anos, é
presença constante nas feiras. Integrante da associação desde a sua fundação,
Josefa vive a rotina de feirante com prazer. E não apenas pela oportunidade de
negociar os produtos oriundos de seu roçado no assentamento. “Se eu vender o
meu produto todo, maravilha. Mas, também, se eu não vender, eu não vou dizer
que a feira não prestou. Porque ali eu recebo um aperto de mão, um abraço, uma
troca de experiência. Sem contar que nós somos vistos pelos consumidores.
Depois, em qualquer lugar que eles encontram a gente, dão a mão. Em qualquer
canto que a gente estiver, eles reconhecem, dão todo apoio, dão toda a atenção.
Isso é maravilhoso. É melhor do que dinheiro. A gente só sente o cansaço quando
chega em casa à noite”, explica. A possibilidade de interação direta entre os
produtores e os consumidores é, aliás, uma das características marcantes das
feiras com essa formatação.
Entre fazendas
Josefa é natural de Alagoa Grande, no brejo paraibano,
município onde nasceu o cantor e compositor Jackson do Pandeiro (1919 - 1982). Filha
de trabalhador rural, começou a ajudar o pai na lavoura quando ainda tinha oito
anos. Sua família vivia na propriedade do fazendeiro para o qual labutava. Não
havia qualquer garantia trabalhista, e o salário não era suficiente para o
sustento da numerosa prole – dos 15 filhos, apenas oito sobreviveram. De tempos
em tempos, precisavam se mudar de fazenda e, consequentemente, mudar de patrão.
A mando do fazendeiro, desmatavam áreas da propriedade, preparavam a terra para
o plantio, plantavam cana ou cuidavam do pasto para o gado.
Aos 19 anos de idade, Josefa conheceu aquele que se tornaria
o seu marido, José Silva Vieira, atualmente com 67 anos (hoje estão separados).
Casou-se e teve cinco filhos – um dos quais acabou falecendo em um acidente. O
trabalho duro no campo, sem carteira assinada, continuou. Sua nova família
passou a morar na propriedade de um plantador de cana-de-açúcar, o qual
fornecia matéria-prima para uma usina da região. Para ajudar no orçamento
familiar, a camponesa encarava jornada dupla. Durante o dia, cortava
cana-de-açúcar junto com o marido. À noite, cuidava da casa e dos filhos. A
renda obtida com o trabalho não era suficiente, e o alimento precisava ser
racionado.
Josefa já tinha mais de trinta anos quando ouviu falar do
movimento pela reforma agrária e se juntou a um grupo organizado pela Comissão
Pastoral da Terra. Deixou o marido e os filhos na fazenda de cana-de-açúcar e
se dispôs a integrar a ocupação de uma área improdutiva.
Primeiro, participou de várias reuniões de formação. Depois,
preparou uma pequena trouxa, onde reuniu os poucos pertences pessoais, uma
panela e uma enxada. “Saí chorando, deixei os meus filhos chorando”, recorda.
Durante a madrugada, partiu para viabilizar a ocupação em
cima da carroceria de um caminhão, na companhia de outros camponeses famélicos
e maltrapilhos. Panelas velhas, recipientes de plástico puídos e instrumentos
de trabalho gastos rolavam pela carroceria, sob os pés dos passageiros, ao
sabor dos buracos da estrada de barro.
Chegaram a um terreno tomado por mato e por touceiras espaçadas
de capim, as quais cresciam livres da aproximação de qualquer animal. O grupo desembarcou
do caminhão às escuras e forrou uma lona sob a terra. Ali, aguardaram o amanhecer.
Bem cedo, iniciaram a confecção de dois pavilhões de lona. Um para os homens e
o outro para as mulheres.
O trabalho, no entanto, foi em vão, já que não demorou e os
camponeses acabaram despejados. A propriedade passou a ser vigiada por homens
armados. Os trabalhadores rurais se abrigaram, então, na divisa da fazenda. Ao
anoitecer, com a proximidade do sereno da madrugada, os capangas do fazendeiro
se retiravam. Nessa hora, Josefa e os seus companheiros de acampamento voltavam
à terra improdutiva e trabalhavam nela. Plantavam, roçavam, limpavam e colhiam.
Três meses depois da montagem do acampamento, o marido e os
filhos se juntaram à Josefa e todos voltaram a trabalhar juntos. “Meu marido
não reclamava. Ele era trabalhador e eu também”, frisa Josefa. Mantiveram essa
rotina até a área ser desapropriada e dar origem ao assentamento Dona Helena,
por volta do ano 2000. Cada família recebeu seis hectares e meio de terra. “É onde
vivo até hoje. Foi onde eu vi a minha panela, com a boca aberta para cima,
cheia de comida”, revela a camponesa.
Respeito à natureza
Onde antes havia uma propriedade improdutiva, foram
assentadas mais de 60 famílias. “Eu produzo de tudo o que você puder imaginar.
Inhame, batata, macaxeira, feijão e milho. De hortaliça, tem de quase tudo.
Cebola, maxixe, quiabo, rúcula, cenoura, cebolinha, pimentão, beterraba, brócolis
e espinafre. Em um lugar onde não tinha nada”, orgulha-se Josefa. A agricultora
também cria vacas e galinhas, de onde obtêm leite e ovos livres aditivos, a
exemplo de hormônios, como sempre faz questão de frisar. O pasto, utilizado
para alimentar as vacas é plantado em sistema de rodízio.
No meio de tanta bonança, está fincada a casa de dois
cômodos onde Josefa mora atualmente. Um corredor de árvores, cujas copas se
encontram acima dos troncos, conduz o visitante entre a porteira do sítio e a residência.
Dentro da porção que coube a Josefa, consta ainda uma área
de reflorestamento, a qual protege uma pequena barragem. A mata preservada
também fornece matéria-prima para o composto orgânico utilizado no plantio. As
folhas das árvores, que caem durante todo o ano, se decompõem e fornecem uma
espécie de adubo natural para a horta.
Agrotóxicos não passam pela porteira. Para espantar pragas e
doenças, os agricultores do assentamento valem-se de alternativas aprendidas
nos cursos e nas oficinas de agroecologia e agricultura orgânica. Josefa
apresenta uma das receitas: “a gente pega pimenta malagueta, álcool, alho e
sabão neutro. Mistura tudo por oito dias. Quando a solução está diluída, a
gente mistura e côa”. Depois de pronta, a solução é depositada em um
pulverizador e destinada à horta.
A associação dos assentados – a Ecovárzea – nasceu pouco
depois de consolidada a posse da terra, já com a missão de abraçar a
agroecologia e a agricultura orgânica. O doutor em Ciências Jurídicas, Sociais
e Políticas, Darcy Zibetti, no artigo Cidadania
e segurança alimentar no Brasil, explica que “a agroecologia nos traz a
ideia e a expectativa de uma nova agricultura, capaz de fazer bem aos homens e
ao meio ambiente como um todo, afastando-nos da orientação dominante de uma
agricultura intensiva em capital, energia e recursos naturais não renováveis,
agressiva ao meio ambiente, excludente do ponto de vista social e causadora de
dependência econômica”.
Questão de saúde
O nutricionista Paulo Roberto Santos, coordenador de
alimentação e nutrição escolar do campus João Pessoa do IFPB, elucida que quem
consome produtos orgânicos procura a garantia de estar consumindo produtos
isentos de agrotóxicos.
Levantamento apresentado pelos pesquisadores Luciana
Almeida, Rodrigo Feix e Sílvia de Miranda revela em números a notável
ascendência da comercialização de agrotóxicos no Brasil. “Enquanto, em 1990, a
quantidade média comercializada de defensivos agrícolas era de apenas 1,13 kg
de princípio ativo por hectare cultivado, as estimativas para o ano de 2003
apontam que a comercialização média aproximou-se dos 3 kg por hectare, o que
equivale a uma variação aproximada de 147%”. Os dados foram publicados no livro
Economia do Meio Ambiente, organizado
por Peter May (Editora Elsevier).
A lógica do aumento da produtividade pelas vias do uso de
agrotóxicos encontra eco, inclusive, entre produtores de menor escala. “Os
pequenos produtores, em um primeiro momento, usando o agrotóxico, pensam ser beneficiários
por ter uma produtividade maior. No entanto, eles são os primeiros que sofrem
com os problemas advindos do contato direto com esses produtos, uma vez que são
eles mesmos que aplicam esse veneno na cultura. As suas famílias são as vítimas
seguintes, porque também consomem os produtos que eles contaminaram”, esclarece
Paulo Santos.
O botânico Hermes Machado Filho, por sua vez, lembra que os
consumidores humanos e os próprios produtores não são as únicas vítimas do uso
de tóxicos na agricultura. Machado Filho, vice-coordenador de extensão e pesquisa
do campus João Pessoa do IFPB, adverte que os insetos polinizadores, que vivem
associados aos vegetais, são bastante prejudicados. “Quando pensamos em um
cultivo, visualizamos a planta já com o fruto pronto. Mas a gente não pondera
sobre o fato de que para aquele fruto se desenvolver, precisa de um
polinizador, que visite a flor, que leve o pólen. E tanto a flor quanto o
inseto precisam estar sadios para que haja esta polinização e,
consequentemente, para que possa vingar o fruto. O agrotóxico e o pesticida
basicamente destroem muitos elos entre os insetos e as plantas, e isso provoca
uma dificuldade na polinização, uma mortalidade desses insetos e,
principalmente, a evasão deles nos cultivares”.
Na primeira fase de sua vida, enquanto ainda trabalhava nas
fazendas dos fornecedores de cana-de-açúcar, Josefa e sua família precisou
lidar com fertilizantes e agrotóxicos. Hoje, a agricultora protagoniza uma
ruptura de paradigmas. Conta, ainda, com o suporte de uma das filhas, a qual se
tornou técnica agrícola e visita o sítio todos os fins de semana.
Quem tem a oportunidade de conhecer o assentamento e de
conversar com a agricultora, de ouvi-la falar com orgulho das árvores que compartilham
consigo o terreno do sítio, passa a ter o pressentimento de que o conjunto de
processos adotado pelos agricultores da agorecologia não se resume a uma mera
opção por métodos de produção. Trata-se, antes, da consequência de uma relação
que remete ao estreitamento de elos entre um filho e um parente ascendente. “O
meu terreno é todo vestido. Não tem terra nua. Eu digo que é a minha mãe Terra.
E a minha mãe não fica nua”, conclui Josefa.
* Eloy Zaidan
é jornalista e professor da Unidade Acadêmica de Gestão e Negócios do Instituto
Federal da Paraíba - campus João Pessoa.
Leitura recomendada:
ZIBETTI, Darcy. Cidadania e
segurança alimentar no Brasil. In BARROSO, Lucas; PASSOS, Cristiane (org.).
Direito agrário contemporâneo. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004. Pág. 125 – 148.
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