Resenha: Jornalismo cultural, de Daniel Piza.

Em 1950 uma certa Lillian Ross, jornalista da The New Yorker, dedicou-se a um empreendimento instigante. Entrevistar o recluso escritor Ernest Hemingway (1899-1961), na ocasião o provável “maior romancista e contista americano vivo” (ROSS, 1950 apud PIZA, 2003, p.84). Para complicar ainda mais, Hemingway já morava em uma zona rural nas proximidades de Havana, em Cuba, e pouco dava o ar da graça em solo americano. Quando o fazia, era porque estava de passagem para outro destino. E essa foi a circunstância com a qual Ross se deparou.

Eloy Zaidan

O escritor desembarcaria em Nova Iorque, rumo à Europa. A jornalista escreveu a Hemingway na tentativa de abiscoitar uma entrevista em sua passagem pela cidade. De resto, a própria Lillian conta o que houve: “(...) ele me enviou uma carta datilografada dizendo que tudo bem e sugerindo que eu o recebesse no aeroporto. ‘Não quero ver ninguém que não queira, nem ter publicidade, nem ficar amarrado o tempo todo’” (ROSS, 1950 apud PIZA, 2003, p.84).

O resultado da empreitada foi o texto How do you like it now, gentlemen?, publicado na edição de 13 de maio de 1950 da revista The New Yorker. O texto pode ser lido na integra na página: http://www.newyorker.com/magazine/1950/05/13/how-do-you-like-it-now-gentlemen. Cerca de cinco anos após ingressar na publicação (oportunidade surgida durante a Segunda Guerra Mundial), Ross acabava de fundar um novo gênero jornalístico: o perfil (PIZA, 2003, p.23-24).

Este é um dos episódios que compõem a saga do jornalismo cultural no mundo, trazida à tona por Daniel Piza, na obra Jornalismo Cultural. O livro traz um grande apanhado histórico do campo no Brasil e no mundo, oferece subsídios para a reflexão sobre a produção de conteúdos na área – embora o volume não seja indicado como um manual de redação para a editoria de cultura – e tece um sincero e preocupado panorama crítico do jornalismo cultural na atualidade.

Ao apontar marcos históricos do jornalismo cultural no Brasil, o próprio Piza poderia ter se incluído. O jornalista passou pelos cadernos de cultura de dois dos maiores jornais brasileiros, o Caderno 2, de O Estado de São Paulo e o Ilustrada, da Folha de São Paulo. Em 1995, vivenciou o marcante tentame do caderno Fim de Semana, do jornal Gazeta Mercantil, experiência que, apesar de bem-sucedida, naufragou junto com o jornal no começo dos anos 2000.

Precursora de todos esses cadernos foi a revista inglesa  The Spectator, no longínquo ano de 1711. Seus fundadores, os ensaístas  Richard Steele (1672-1729) e Joseph Addison (1672-1719) almejavam oferecer uma revista que refletisse temas caros à vida cultural dos indivíduos – tais como livros, óperas, teatro e política – de forma acessível (PIZA, 2003, p.11-12). Também na Inglaterra, Samuel  Johnson (1709-1784), vulgo Dr. Johnson, o qual escrevia para a The Rambler, é considerado o primeiro grande crítico cultural – precursor de todos os demais (PIZA, 2003, p.13).

A França, por seu turno, ofereceu inestimável contribuição ao jornalismo cultural por meio de Sainte-Beuve (1804-1869), o qual publicava nos jornais Le Globe e Le Constitutionnel. O francês dotou o jornalismo cultural de status e apontou para uma nova possibilidade: a de se viver exclusivamente da crítica cultural, sem precisar recorrer a outras atividades na academia ou mesmo no campo ficcional (PIZA, 2003, p.15).

A bem da verdade, muitos escritores passaram a se valer da atividade de crítico como forma de complementar a renda parca oriunda da ficção. Este foi o caso do pioneiro norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), que acabou mais conhecido em sua terra natal como crítico do que como contista ou poeta (PIZA, 2003, p.16).

Também norte-americano, mas com um pé fincado na França, o ensaísta e romancista Henry James (1843-1916) é emblema de um período marcado pelo crescimento da crítica cultural nos Estados Unidos – a segunda metade do século XIX. Este século, aliás, marca uma mudança de postura dos críticos, sem prejuízo, entretanto, da influência que continuariam a exercer.

Sobre a transformação, Piza (2003, p.20) faz saber: “Não se tratava mais daquela presença algo sacerdotal, missionária, do esteta que prega uma forma de vida por meio de julgamentos artísticos e assim atrai discípulos (...)”. Sobretudo com o advento do século XX, o crítico passa a ser “(...) mais incisivo e informativo, menos moralista e meditativo” (PIZA, 2003, p.20).

Em 1925, a América veria nascer a já mencionada revista The New Yorker, a qual teve o mérito de revelar grandes escritores e de contribuir com o desenvolvimento do jornalismo como um todo, sobretudo pela guarida àquilo que se convencionou chamar de jornalismo literário. Aqui foi publicada a obra A sangue frio, de Truman Capote (1924-1984), em 1959.

A concorrente da The New Yorker, a Esquire, não ficou por baixo. Em suas páginas passaram Aldous Huxley (1894-1963), Scott Fitzgerald (1896-1940) e os seminais do campo do jornalismo literário Norman Mailer (1923-2007) e Gay Talese (PIZA, 2003, p.26).

Com o tempo, o espaço destinado à cultura nos veículos da grande imprensa passou a ser cativo. Na Europa, especialmente, o prestígio dos colunistas culturais em vários jornais é tão grande quanto a fama de muitos deles pelo mundo: Umberto Eco e Vargas Llosa são exemplos (PIZA, 2003, p.30).

No Brasil, Machado de Assis (1839-1908) e José Veríssimo (1857-1916) são destacados por Piza, em um contexto de ebulição do jornalismo cultural nacional, o final do século XIX (PIZA, 2003, p.16-17). É sintomático que Machado, quiçá o maior escritor brasileiro, tenha se valido da crítica como uma de suas atividades. O jornalismo, ao longo da história da literatura brasileira, serviu de guarida para escritores prolíficos, os quais dificilmente poderiam viver apenas da ficção.

Na mesma década em que os Estados Unidos via nascer a The New Yorker, o Brasil ganhou a controvertida, porém emblemática, revista O Cruzeiro. Embora dedicada a assuntos diversos, para uma gama de leitores tão diversificada quanto, o magazine de Assis Chateaubriand (1892-1968) publicou gente como José Lins do Rego (1901-1957), Vinícius de Moraes (1913-1980), Manuel Bandeira (1886-1968) e Raquel de Queiroz (1910-2003) (PIZA, 2003, p.32-33).

Outra publicação que merece destaque é o Correio da Manhã, o qual abrigou em seus quadros, críticos do quilate de Álvaro Lins (1912-1970) e Otto Maria Carpeaux (1900-1978) (PIZA, 2003, p.34), além de encartar, a partir dos anos 1950, o caderno cultural Quarto Caderno, aos domingos (PIZA, 2003, p.36). Também na década de 1950, o Jornal do Brasil, na esteira de sua modernização, lançou o Caderno B, ao qual Piza atribui a pecha de “precursor do moderno jornalismo cultural brasileiro” (PIZA, 2003, p.37).

Outras publicações brasileiras que merecem menção são a Senhor – inspirada na Esquire, e que chegou a publicar Graciliano Ramos (1892-1953), Guimarães Rosa (1908-1967), Clarice Lispector (1920-1977) e Jorge Amado (1912-2001), além de tradução de J.D. Salinger (1919-2010) (PIZA, 2003, p.38) – e o lendário O Pasquim, o qual além da forte pegada cultural, foi um emblema de resistência ao regime autoritário vigente no Brasil em sua época. Em seus quadros, dentre outros, Millôr Fernandes (1923-2012), Jaguar, Ziraldo e Paulo Francis (1930-1997).

Somente nos anos 1980, dois dos maiores jornais brasileiros, O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo, criam os seus cadernos culturais diários. Respectivamente o Caderno 2 e a Ilustrada (PIZA, 2003, p.40). No início dos anos 1960, O Estado já havia encartado o Suplemento Literário.

Se o jornalismo cultural brasileiro não chegou a ser pródigo em textos que fizessem remissão ao jornalismo literário como visto nos Estados Unidos, foi, por outro lado, rico no campo da crônica, um gênero querido, que atraia não apenas leitores, mas grandes escritores (PIZA, 2003, p.33), alguns dos quais tornados célebres justamente como cronista.

Apesar de uma trajetória robusta – o que foi apresentado aqui definitivamente não reflete o todo – o panorama atual do jornalismo cultural brasileiro é, aos olhos de Daniel Piza, uma espécie de culto a nostalgia, por passar longe da qualidade e da impetuosidade do que já foi feito. A começar pela condescendência dos jornalistas, os quais, para o autor de Jornalismo Cultural, erram a mão ao conceder, quase que indiscriminadamente, cotações altas às produções avaliadas (PIZA, 2003, p.48). Não bastassem ser cada vez menores em tamanho, muitos dos textos jornalísticos são espécies de versões pouco distintas de press-releases, incrementados com palpites dispensáveis pela falta de fundamentação (PIZA, 2003, p.62-63). E mais:

“(...) revistas culturais ou intelectuais já não têm a mesma influência que tinham antes; críticos parecem definir cada vez menos o sucesso ou fracasso de uma obra ou evento; há na grande imprensa um forte domínio de assuntos como celebridades e um rebaixamento geral dos critérios de avaliação dos produtos. O jornalista cultural anda se sentido pequeno demais diante do gigantismo dos empreendimentos e dos ‘fenômenos’ de audiência. As publicações se concentraram mais e mais em repercutir o provável sucesso de massa de um lançamento e deixaram para o canto as tentativas de resistência – ou então as converteram também em ‘atrações’ com ibope menor mas seguro” (PIZA, 2003, p.31).

O empobrecimento do jornalismo cultural não se restringe a marginalização da crítica, pois também passa pelas entrevistas insossas e por colunas que desperdiçam demasiadas linhas com relatos do cotidiano do próprio colunista (PIZA, 2003, p.67). Por fim, ainda há o desfalque dos intelectuais universitário, os quais, ao contrário de antes (vide Sergio Buarque de Holanda e Otto Maria Carpeaux), hoje, em geral, “desprezam o jornalismo” e “perderam a capacidade de escrever para um público mais amplo” (PIZA, 2003, p.117). Da mesma forma, Daniel Piza se mostra preocupado com as tentativas de “(...) igualar o jornalismo cultural aos outros, como o político e o econômico (...)” (PIZA, 2003, p.65).

Ao final, não é difícil crer que, somados, todos estes males despojam o jornalismo cultural recente de certo tempero, o qual seja capaz de provocar, de insinuar-se e de fazer com que a crônica cultural, por si só, seja uma peça de cultura.

De fato, para o bem ou para o mal, tem sido cada vez mais difícil encontrar críticos como aquela da primeira geração da The New Yorker: Dorothy Parker (1893-1967). Esta parecia beirar a passionalidade, e “(...) podia começar uma resenha da seguinte forma: ‘Este não é um livro para ser deixado de lado. É para ser jogado longe, com força’” (PIZA, 2003, p.23).

Por fim, merece friso o fato de que, em uma sociedade marcada pelo agendamento encetado pelos meios de comunicação social, figurar na editoria de cultura de um jornal ou revista pode significar a atenção dos leitores. Por outro lado, a indiferença da mídia pode ser o primeiro passo para a indiferença do grande público. O problema é acentuado pela evidente falta de espaço nos jornais e revistas, para tratarem de todos os produtos culturais lançados. Muitos sempre serão preteridos e, de outro modo, encontraram dificuldades para chamar a atenção do público. Se uma miríade de lançamentos já padece de atenção, o que dizer de obras já lançadas? Essas raramente voltam a figurar nas gazetas e magazines, atropeladas que são pelo discurso do “novo”, inerente ao jornalismo de manual – um intruso cada vez mais naturalizado nas editorias de cultura.

Leitura recomendada:

PIZA, Daniel. Jornalismo cultural. São Paulo: Contexto, 2003. (Coleção Comunicação). 143p.

Eloy Zaidan é jornalista, relações públicas e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB).

 

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