Resenha: Marketing cultural e financiamento da cultura: teoria e prática em um estudo internacional comparado, de Ana Carla Fonseca Reis.

A história do açougueiro Luiz Amorim serviria de enredo para uma peça de teatro, livro ou filme. Depois de trabalhar como vigia e engraxate, Luiz, então com 12 anos, foi contratado para trabalhar em um modesto açougue localizado na 312 Norte. Chegou a morar nos fundos do estabelecimento. Longe de ser uma biblioteca, este foi o local improvável que o aproximou dos livros. Quando estava em seu aposento improvisado, Luiz lia para passar o tempo. Em 1994, o açougueiro conseguiu comprar o estabelecimento. E não demorou a deixar a sua marca pessoal no empreendimento: uma estante de livros. Luiz Amorim tornou-se o orgulhoso proprietário do Açougue Cultural T-Bone, o curioso varejo que vende cortes de carnes e funciona como um equipamento cultural.

Eloy Zaidan

Apesar de inusitada, a iniciativa de Amorim deixou o açougue T-Bone nacionalmente famoso, e conquistou grande atenção da mídia. Trata-se de um emblema do quão o marketing cultural, ao contrário do que imagina o observador apressado, é realidade no seio das empresas de micro, pequeno e médio porte, ainda que muitas vezes praticado de forma intuitiva, e não em um contexto estratégico.

Entre multinacionais e grandes bancos, o estabelecimento brasiliense é um dos cases mencionados na obra Marketing Cultural e financiamento da cultura: teoria e prática em um estudo internacional comparado. Trata-se de um levantamento prolífico, realizado por Ana Carla Fonseca Reis, graduada e mestre em Administração pela Fundação Getúlio Vargas e pela Universidade de São Paulo, respectivamente, e cuja experiência profissional na área abrange trabalho no departamento cultural  do Consulado da França.

A obra se destaca pelo estudo comparativo realizado entre diferentes leis de incentivo à cultura editadas nos municípios e estados brasileiros, abrangendo realidades tão diversas quanto Cabedelo, na grande João Pessoa, e São Paulo. Também se dedica a análise das leis de incentivo federal, algumas tão afamadas quanto polêmicas. O livro contempla ainda um estudo comparado com as experiências de outros países no campo das políticas culturais, abrangendo a relação entre estado e iniciativa privada. Os Estados Unidos, por exemplo, “(...) que também no setor cultural apresentam-se como arautos do liberalismo, enfrentam uma situação interessante, na qual a participação do Estado no delineamento do setor cultural aparece à sombra da iniciativa privada” (REIS, 2009, p. XVII).

A autora parte do conceito segundo o qual a “cultura” é considerada

“(...) a produção material e imaterial de uma sociedade e que lhe dá seu caráter distintivo. Assim, inclui mas não se limita à produção artística. Cultura, aqui, abrange deste a produção de elementos da chamada indústria cultural, como livros, revistas, jornais, filmes, vídeos e CDs, até o fruto do trabalho dos nossos milhares de cozinheiros, escultores, paneleiras, rendeiras, tapeceiros e tantos outros que encantam por sua singeleza de criadores anônimos” (REIS, 2009, p. XX).

Por seu turno, a empresa que utiliza a cultura como ferramenta para se transmitir uma mensagem para um determinado público – sem que a cultura em si seja sua atividade fim - estaria se valendo do marketing cultural. O marketing cultural traz consigo objetivos comerciais, diferentemente do mecenato, no qual não se explora publicamente o incentivo concedido (REIS, 2009, p. 4).

Um patrocínio a um projeto cultural insere-se no composto de marketing de uma empresa e, portanto, é parte de uma estratégia de comunicação do qual o patrocinador supõe um retorno. Segundo essa linha de raciocínio, um produtor cultural ou artista que propõe um patrocínio não deve ser visto como alguém que meramente pede dinheiro, e sim como alguém que está vendendo algo, o qual, espera-se, trará benefícios ao patrocinador (REIS, 2009, p. 13).

Há ainda o fato, frisado por Ana Carla Reis (2009, p. 15), de que o patrocínio não precisa vir necessariamente na forma de dinheiro. Uma empresa pode, em troca do benefício do patrocínio, fornecer produtos ou prestar serviços úteis à realização do projeto cultural, saída criativa e especialmente pertinente para as micro, pequenas e médias empresas. Uma gráfica pode arcar com os impressos de um evento, bem como um hotel pode prestar o serviço de hospedagem para artistas convidados. Até mesmo a cessão de recursos humanos pode ser considerada, disponibilizando-se funcionários qualificados para atuar durante a realização da ação cultural.

Justificativas não faltam para um empreendimento considerar o marketing cultural como parte das ferramentas de comunicação. A começar pela já clássica assertiva segundo a qual o desenvolvimento tecnológico e a ampliação do conhecimento sobre os consumidores redundaram em uma crescente padronização dos produtos e serviços oferecidos, tornando-os cada vez mais indistintos aos olhos dos clientes. Diante disso, as estratégias para agregar valor às mercadorias e fidelizar os clientes passaram a ser imperativas, contexto no qual o marketing cultural, com o seu apelo emocional, obtém destaque (REIS, 2009, p. 25).

A cultura seria, ainda, uma forma mais eficiente de se transmitir mensagens de interesse de uma organização, na medida em que, em meio a saturação das formas tradicionais de comunicação, possui maior chance de superar a percepção seletiva das audiências (REIS, 2009, p. 72).

No tocante à imagem “(...) está o fato de que, ao associar-se a projetos culturais, a empresa logra transferir para a sua marca os atributos relacionados à própria cultura, como criatividade, inovação, modernidade, flexibilidade, tolerância e respeito às raízes da sociedade” (REIS, 2009, p. 86).

A autora estende os benefícios do investimento em cultura pelas empresas ao ambiente interno, com destaque para o campo do recrutamento de talentos, o que, em última instância, impacta na produtividade e nos lucros de uma organização. A lógica é simples. Ao investir no enriquecimento da oferta cultural de uma determinada região – no caso, a região onde está instalada a empresa –, a organização não apenas estaria lançando mão de uma estratégia clássica de relações públicas junto à comunidade. Estaria também tornando a cidade mais atraente aos potenciais funcionários qualificados. O recrutamento seria favorecido na medida em que haveria uma redução da resistência à mudança de município.  A obra Marketing cultural e financiamento da cultura menciona dois casos nesse sentido. A Volvo investiu na Orquestra Sinfônica e na Ópera da cidade sueca de Gotemburgo, local de unidade da empresa, contribuindo para alterar um cenário onde a disponibilidade de lazer cultural era escassa e estacional (REIS, 2009, p. 78).

Outro exemplo é oferecido pela indústria farmacêutica norte-americana Eli Lilly. Sediada em Indianápolis, a empresa vale-se da Orquestra Sinfônica e do Museu de Artes da cidade, dentre outros equipamentos, para mitigar a resistência dos familiares dos cientistas (REIS, 2009, p. 123).

Apesar dos atributos, o marketing cultural não é uma panaceia. Trata-se de uma das ferramentas possíveis dentro do composto das estratégias de comunicação de uma empresa, e, como tal, deve ser trabalhado de forma sinérgica, com vistas a complementá-la ou reforçá-la (REIS, 2009, p. 91). Os gestores dispostos a lançar mão do marketing cultural também precisam estar cientes de que esta é uma ferramenta producente no longo prazo, ou seja, exige continuidade. Não se pode esperar uma percepção duradoura por parte das pessoas com ações isoladas, sem conexão e sem periodicidade (REIS, 2009, p. 106).

Mais uma condição necessária, inerente à seleção de um projeto cultural pela empresa: o proponente merece confiança? O parceiro cultural deve ser comprometido, competente e responsável. A prestação do serviço cultural estará atrelada a imagem da marca patrocinadora e, por isso, deve ser executada com profissionalismo, o que inclui não apenas o planejamento e a implementação, mas, da mesma forma, a entrega de relatórios e a prestação de contas (REIS, 2009, p. 115).

Todavia, quiçá a maior barreira à sensibilização do setor privado ao financiamento da cultura reside na relativa fragilidade da determinação do valor dos resultados obtidos pelo investidor. Para Ana Carla Reis, o marketing cultural – de certa forma, uma novidade enquanto ferramenta – sofre, no quesito mensuração de seus resultados, “(...) da mesma falta de instrumentalização que as ferramentas tradicionais experienciaram em seu início” (REIS, 2009, p. 120). Em todo caso, duas das formas mais utilizadas pelas empresas para medir o retorno do investimento são a pesquisa de conhecimento da marca e o clipping para a contabilização da cobertura midiática à ação cultural patrocinada – o que significaria um espaço conquistado de tal forma que, de outra maneira, teria de ser pago como uma propaganda (REIS, 2009, p. 127).

Por outro lado, se depender do setor público, não vão faltar estímulos para que as empresas adotem a cultura como um dos canais de comunicação organizacional com os seus stakeholders. Através de leis de incentivo, grosso modo, o governo (federal e de diversos  Estados e municípios) financia indiretamente ações culturais, ao abrir mão de parte da arrecadação dos impostos devidos por agentes da iniciativa privada que investem em projetos culturais pré-aprovados ou, ainda, destinam recursos aos fundos de cultura (REIS, 2009, p. 154).

Apesar da oportunidade das organizações privadas se favorecerem das leis de incentivo, muitas micro e pequenas empresas passam ao largo do benefício das isenções tributárias por desconhecimento legal ou, simplesmente, por medo da burocracia a qual, porventura, podem acabar se metendo (REIS, 2009, p. 215).

De qualquer forma, se os incentivos governamentais não forem suficientes, e as promessas do marketing cultural não seduzirem empresário algum, ainda resta a alternativa de se arrecadar recursos por meio da venda de lembranças e produtos relacionados às atividades dos museus, fundações e institutos. Com a ampliação do acesso à internet, lojas virtuais podem estender o apelo de compra para além daqueles que efetivamente visitam os equipamentos culturais. Esta é uma faceta do financiamento da cultura mencionada na obra de Ana Carla Reis (REIS, 2009, p. 62), ainda que brevemente, e que exige certa dose de criatividade por parte do produtor cultural. Afinal de contas, a menos que o projeto seja o de um açougue cultural, serão necessárias outras mercadorias que não cortes especiais.

Leitura recomendada:

REIS. Ana Carla Fonseca. Marketing cultural e financiamento da cultura: teoria e prática em um estudo internacional comparado. São Paulo: Cengage Learning, 2009. 313 p.

AÇOUGUE Cultural T-Bone: a junção inusitada de carnes e livros que deu certo em Brasília. TV Brasil, Brasília, 2012. Disponível em http://tvbrasil.ebc.com.br/sabadosazuis/episodio/acougue-cultural-t-bone. Acessado em 13 de jan de 2015.

 

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