O acidente radiológico de Goiânia e a ausência de uma cultura científica

Local do acidente em Goiânia. Foto: Ycaro Ribeiro, Wikipedia

Como a desastrosa sequência de eventos envolvendo as vítimas do acidente com o Césio-137 em Goiânia conduz a reflexões sobre a emergência de uma educação científica que pavimente em cultura de C & T no Brasil.


Tiago Eloy Zaidan;
Francisco de Assis Brandão.

Em 13 de setembro de 1987, em Goiânia (GO), dois catadores de sucata entraram em um prédio abandonado de uma clínica particular e retiraram o cabeçote do equipamento de radioterapia, que pesava 120 kg e continha uma cápsula com cerca de 90 gramas e três centímetros de altura (fonte blindada) de Césio-137. A partir de então, uma seqüência incrível de erros e de completa demonstração de desconhecimento científico pincelou uma das maiores tragédias radiológicas mundiais.

No dia 18 do mesmo mês, os catadores venderam a peça ao proprietário de um depósito de ferro velho, no subúrbio da capital de Goiás, que, por sua vez, desmontou o cabeçote na oficina instalada na garagem de sua casa e conseguiu romper, com uma marreta, a integridade da cápsula, revestida com aço inoxidável. O pó contido na cápsula foi espalhado, não somente na própria casa, mas, também, fora dela. Tal material, envolvido em sacola plástica, chegou a ser transportado de ônibus até o escritório da Vigilância Sanitária.

Todas as pessoas que ajudaram no transporte do cabeçote – íntegro e, posteriormente, desmontado – apresentaram sinais de exposição excessiva à radiação, redundando em efeitos como: queda dos cabelos, queimaduras da pele, escurecimento dos dentes e unhas, além de acessos de tosse, vômitos e diarréia.

O caso mais grave foi o da filha do proprietário do Ferro Velho, Leide das Neves, de apenas seis anos de idade. Leide comeu pão com as mãos sujas do pó azul que brilhava na escuridão. A menina faleceu, vítima de contaminação interna e externa, sendo sepultada em caixão blindado com chumbo e sua sepultura construída em concreto. Outras seis das vítimas expostas ou contaminadas em estado grave, portadoras da síndrome aguda da radiação, foram transferidas para o Hospital Marcílio Dias, da Marinha, no Rio de Janeiro, que dispunha de instalações para tratamento de pessoas expostas à radiação e contaminação com material radioativo. Outras 14 foram hospitalizadas em Goiânia e mais 30 colocadas sob observação médica após se submeterem a tratamento para descontaminação – que incluía banhos com detergentes, ingestão de diuréticos com Azul da Prússia e prática de exercício ou sauna para eliminação da contaminação pelo suor. Contudo, mais três contaminados não resistiram e faleceram. foram as primeiras vítimas mortais do acidente.

Diversas pessoas que residiam em áreas que sofreram contaminação ou lidaram com o material radioativo foram transferidas para o Estádio Olímpico de Goiânia, onde passaram a ser monitoradas e, posteriormente, submetidas a processo de descontaminação. Dentre os monitorados, aproximadamente 250 apresentaram sinais de contaminação corporal interna ou externa e receberam atenção especial.

Compreensão científica

Ocorrências da natureza, como ventos e fortes chuvas contribuíram para a dispersão do material radioativo, cuja presença foi observada no solo, nos telhados das casas, nos troncos das árvores, folhas e frutos, nos animais e nos utensílios de uso doméstico contidos em 20 residências de pessoas envolvidas e de seus parentes e amigos. Contudo, a displicência, o manuseio indevido e especialmente a abertura da cápsula, e o posterior manejo impróprio do pó de Cloreto de Césio, altamente solúvel em água, foram decisivos para a disseminação do Césio-137. Erros que se mostraram fatais e que denunciam o elevado coeficiente de alijamento que acomete o público geral com relação à compreensão científica – para além do senso comum e do consumo de curiosidades de caráter sensacionalista.

Descontaminação e isolamento

Em Goiânia, todo o produto resultante da evacuação da população e interdição de casas e remoção do pavimento e solo foi colocado em tambores metálico de 200 litros e transportados por caminhões para um depósito temporário em Abadia de Goiás (25 km de Goiânia), onde hoje se encontra instalado o Centro Regional de Ciência Nucleares do Centro-Oeste da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), especialmente construído para garantir segurança física e fiscalização do primeiro Repositório Definitivo de Rejeitos Radioativos no Brasil. O repositório definitivo foi construído visando à supervisão da contenção dos rejeitos por 300 anos, tempo suficiente para que, praticamente, toda a sua radioatividade desapareça, esclarece o professor Francisco Brandão.

Nem só de acidentes é composta a história das Ciências Nucleares. Os acidentes, de fato, existem. Mas a presença da radioatividade vai além das hecatombes. É o que defende a Professora Helen Khoury, do Departamento de Energia Nuclear da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e responsável pelo Museu de Ciências Nucleares da UFPE. Para Khoury, a partir do momento em que a população é informada, começa a perceber, de fato, qual é a contribuição da radiação. “Colocamos gráficos com os níveis de radiação que você recebe quando viaja de avião, devido à radiação cósmica. Então, à medida que as pessoas percebem que a radiação existe, ela é natural, começam a entender que o que nós temos que fazer é nos protegermos das radiações que o homem cria ou utiliza. Mas que ela existe na natureza e, devemos conviver com ela”.

Uma educação científica crítica, que contemple campos diversos do conhecimento humano – como as Ciências Nucleares –, pode cooperar na prevenção de episódios como aquele que envolveu a criança Leide, em Goiânia. O acidente, aliás, repercutiu em vários filmes e publicações nacionais e internacionais, como o relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA, sigla em inglês), publicado em inglês, espanhol, francês e russo, intitulado: The radiological accident in Goiânia (1988). Também surgiram os livros Goiânia Rua 57 o nuclear na terra do sol de Fernando Gabeira, e A menina que comeu Césio, de Fernando da Silva Pinto, além do filme dirigido por Roberto Pires, em 1990, O pesadelo de Goiânia. Obras pertinentes, para não deixar esquecer uma tragédia emblemática, de um país que precisa cultivar, com iminência, sua cultura científica.
    
Tiago Eloy Zaidan é jornalista e professor do Instituto Federal da Paraíba – campus João Pessoa.

Francisco de Assis Brandão é professor do Departamento de Energia Nuclear da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ex-professor do ITA (SP) e ex-funcionário da Agência Internacional de Energia Atômica (Viena) e da Comissão Nacional de Energia Nuclear (RJ).

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